Estudo revela que a maioria dos detentos por tráfico de drogas são negros, pobres e não têm vínculos com facções criminosas.

Policiais militares em patrulhamento na região central de Guaratinguetá, no interior de São Paulo, avistaram um homem agindo de maneira suspeita. Diante do nervosismo do jovem de 19 anos, os agentes decidiram abordá-lo e revistá-lo, encontrando apenas seu celular.

Ao solicitarem o código IMEI para rastrear a origem do telefone, o jovem não soube informar. Diante disso, um dos policiais decidiu vasculhar o conteúdo do aparelho e encontrou uma foto de uma arma numa conversa do jovem no WhatsApp com um amigo. Essa descoberta foi o suficiente para que os policiais fossem até a residência do jovem em busca da arma. Durante a busca, foram encontrados nove pinos vazios, 5 gramas de crack em 10 pedras, 22 gramas de maconha em nove porções, e R$ 51. O jovem foi preso em flagrante por tráfico de drogas, de acordo com o boletim de ocorrência.

No entanto, a defesa do jovem alega que sua autorização para a entrada dos policiais em sua casa foi concedida sob coação. O advogado de defesa, Gustavo Moreno, afirma que o jovem relatou ter sido pressionado pelos policiais, que disseram que, caso não confessasse que a droga era sua, sua mãe seria envolvida no caso. Moreno argumenta que não há provas de que o jovem tenha autorizado a entrada dos policiais antes de sua chegada à residência, sendo que o termo de autorização só foi assinado na delegacia.

As provas encontradas durante a ação policial foram consideradas ilegais em primeira instância, porém, o Ministério Público de São Paulo recorreu. O caso, que teve início com a abordagem em 2016, foi encerrado no dia 29 de junho deste ano com a absolvição do jovem pela 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Esse caso guarda semelhanças com os dados preliminares da pesquisa “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). De acordo com essa pesquisa, a maioria dos processados por tráfico de drogas no Brasil é composta por homens jovens e negros, com baixa escolaridade e anteriormente envolvidos com o sistema de Justiça.

O estudo analisou 41.100 processos de tribunais de justiça estaduais com decisão no primeiro semestre de 2019. Os dados preliminares foram apresentados em junho deste ano, durante um evento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A pesquisa revelou que em apenas 13% dos processos há menção a facção criminosa, o que indica a possibilidade de superestimação desse dado.

O Supremo Tribunal Federal atualmente está analisando o tema da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Um dos aspectos em discussão é a quantidade de maconha que uma pessoa pode possuir sem ser considerada traficante. Além disso, há a preocupação com a caracterização de pessoas mais jovens e menos escolarizadas como traficantes por parte das autoridades policiais e judiciais.

De acordo com o estudo do Ipea, apenas 20% dos processos analisados têm origem em órgãos especializados em investigação, como a Polícia Civil. Os 80% restantes são iniciados por órgãos que não têm essa função, sendo que a maioria (77%) tem origem em ações da Polícia Militar, em casos de prisão em flagrante, muitas vezes motivados por “atitude suspeita”.

A pesquisa revela que em quase um quinto dos casos analisados não há apreensão de qualquer tipo de substância com os réus. Além disso, a média de substâncias apreendidas é de 85 gramas de maconha e 24 gramas de cocaína.

Em 80% das ocorrências, os réus permanecem em prisão preventiva durante o processo. Esse foi o caso de um jovem preso em Franca, interior de São Paulo, em março de 2021. Apesar de não ter sido encontrada nenhuma substância com ele, o rapaz foi acusado de tráfico e posse de maconha após supostamente confessar o crime sob coação policial. Ele ficou preso por cerca de 10 meses e só foi absolvido pelo Superior Tribunal de Justiça, que considerou a abordagem policial ilegal.

Em relação à entrada dos policiais nas residências dos acusados, a pesquisa revela que, na maioria dos casos, ocorre sem mandado de busca e apreensão. Isso ocorre porque, em mais da metade dos processos analisados, não há registro sobre o consentimento ou recusa para a entrada em domicílio.

Esses dados expõem a prevalência de um direcionamento do sistema de repressão às drogas contra grupos específicos na sociedade, como homens negros, jovens, pobres e com baixa escolaridade. A pesquisadora Daniely Reis, do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, afirma que esses fatores contribuem para o perfilamento racial dos processados por tráfico.

O Supremo Tribunal Federal está julgando um habeas corpus que pede a anulação de provas obtidas em abordagens policiais motivadas por critérios raciais. A discussão atual no tribunal visa combater a construção política do estereótipo do suspeito de tráfico, que acaba por impactar desproporcionalmente certos grupos sociais.

Em suma, o caso de Guaratinguetá e os dados da pesquisa do Ipea revelam a necessidade de reavaliação das ações policiais relacionadas ao tráfico de drogas, visando a proteção dos direitos individuais e a redução dos impactos desigualitários dessas políticas públicas.

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