Ao longo de 15 páginas, as duas instituições sustentam que a medida implica graves violações constitucionais, pois impõe uma restrição à liberdade e trata a saúde como uma obrigação imposta aos indivíduos e não como um direito fundamental. “A Constituição Federal afirma que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ora, a internação compulsória é a privação de liberdade sob o pretexto de submeter um sujeito a tratamento de saúde”, registra o documento.
Além disso, as duas instituições consideram que a medida fere não apenas dispositivos constitucionais como também tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte. Para o MPF e a DPU, o Estado não pode adotar medidas de higienismo social. As instituições consideram que o uso da internação compulsória para tratamento de dependentes químicos sem o consentimento deles geralmente tem como objetivo não declarado a retirada dessas pessoas dos espaços públicos.
A proposta está na contramão da Lei Federal 10.216/2001, que instituiu a Política Antimanicomial. Ela estabelece a adoção de um modelo assistencial em saúde mental, com ênfase na reinserção social, por meio de tratamento ambulatorial, que deve sempre ser priorizado em face da internação.
Eduardo Paes anunciou a medida na última terça-feira (21) por meio de publicação nas redes sociais. Ele informou ter solicitado ao secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, uma proposta para implementar a internação compulsória de usuários de drogas. No mesmo dia, o secretário Daniel Soranz endossou a iniciativa. “Estamos vendo uma série de casos de pacientes que passam pelas unidades ambulatoriais, com situação clínica se agravando e indo a óbito. Tivemos notícia de um garoto de 20 anos, três meses fora de casa, que foi a óbito por overdose e dependência química. Isso é uma preocupação imensa, o número de óbitos desses casos vem aumentando muito no município do Rio de Janeiro”, disse.
A postagem de Eduardo Paes sofreu críticas de pesquisadores e entidades que atuam nas áreas da saúde e dos direitos humanos. As críticas baseiam-se no argumento de que as altas taxas de recaídas logo nos primeiros dias após o fim de tratamentos compulsórios indicam que a medida não funciona. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), representação regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), também tem posição contrária por considerá-la inadequada e ineficaz.
Após as críticas, Paes voltou às redes sociais nesta sexta-feira (24) compartilhando um artigo que elogia a medida. “Não se falou em retirá-los com tiro, porrada e bomba pela polícia. Mas, sim, através da atuação de médicos e assistentes sociais, cuidadosamente preparados para a tarefa”, escreveu Ricardo Bruno, autor do texto. A vereadora Luciana Boiteaux respondeu Paes nas redes sociais e defendeu que a situação dos usuários de drogas deve ser enfrentada fortalecendo os centros de Atenção Psicossocial (CAPs), que estariam precarizados.
A nota técnica emitida pela DPU e pelo MPF também defende a importância dos CAPs e ressalta que são responsáveis pela indicação do acolhimento, pelo acompanhamento especializado durante esse período, pelo planejamento da saída e pelo seguimento do cuidado após a saída, devendo promover a reinserção do usuário na comunidade. DPU e MPF observam que a internação deve se dar sempre em caráter individual, sendo vedada sua adoção como política pública massiva.
A legislação até permite a internação compulsória, porém apenas de forma excepcional, como no caso em que o usuário de droga comete crime. Desde a última terça-feira, essa questão também está sendo debatida nos tribunais, com base na Lei Federal 10.216/2001, que estabelece os tipos de internação psiquiátrica e suas condições de aplicação.
Ao mesmo tempo, em agosto desse ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes que deu prazo para que o governo federal elabore um plano para a efetiva implementação de uma política nacional para acolhimento dessa população e determinou que estados e municípios observem diretrizes normativas. A decisão também proibiu o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas e o emprego de arquitetura hostil.
Independente da decisão final sobre a questão, fica evidente a importância de um debate amplo e embasado no campo jurídico, de saúde e de direitos humanos para a resolução desse problema complexo e delicado. A situação dos usuários de drogas, principalmente aqueles em situação de rua, precisa ser enfrentada de maneira humanitária, buscando soluções que respeitem os direitos fundamentais dessas pessoas.